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As consequências da decisão de Judá

A Bíblia costuma colocar o leitor diante de contrastes entre irmãos. Nela temos Caim e Abel. Depois, Ismael e Isaque, Jacó e Esaú, os filhos de Davi, etc. Por isso, no fim de Gênesis, isto não é diferente. Ali José e Judá são contrastados. Ambos se afastaram da sua família e da sua terra. Enquanto, o primeiro foi vendido, o segundo decidiu se distanciar. Quais as consequências da decisão de Judá de se afastar de seus irmãos?

Há dez anos, deixei o interior do Paraná para vir a São Paulo. De lá para cá, um aspecto da minha vida mudou: o jeito de falar. Eu falava “leitê quentê que dói o dentê”. Mas o sotaque paranaense praticamente não existe mais, apenas algumas expressões resistem. Por isso, ao modo paulistano de falar, as palavras soam mais como: “leiti quenti que dói o denti”. Este meu exemplo é apenas um de como mudanças geográficas podem impactar a vida de alguém.

E quando as mudanças deixam de ser geográficas e se tornam espirituais? Quais as implicações e perigos do afastamento da comunidade da fé?

Afastamento e acomodação

A primeira das consequências da decisão de Judá de se afastar de seus irmãos é sua acomodação aos padrões de outro povo. Judá é um ótimo exemplo para entendermos os impactos de uma mudança que é tanto geográfica quanto espiritual. Pois, quando se apartou de seus irmãos, mudou-se para perto dos cananeus (cf. Gn 38.1). Um povo com costumes e religiões diferentes. Sua decisão deu origem a mais séria ameaça[1] à uma família que estava se esfacelando[2].

Entre os cananeus, claramente assume a cultura e a forma de vida daquele povo. Primeiro, casou-se[3] com uma canaanita, o que era é reprovado pela sua família[4] e, principalmente, pelo Senhor. Desta união, três filhos nasceram.

Tempos depois, para o seu primogênito Er, tomou Tamar por esposa, uma mulher natural daquela terra. Desse modo, revela que sua união com uma canaanita abriu um precedente em sua própria casa.

No entanto, uma vez que a família adotou o padrão canaanita, o leitor é surpreendido pela informação de que Er era perverso aos olhos do Senhor, por isso este o matou. Em relação a isso, não sabemos qual era a perversidade do primogênito de Judá. O mais provável é que era algo semelhante ao que Onã, outro filho, também cometeu, isto é, não querer suscitar descendência ao seu irmão e por consequência netos à Judá (cf. Gn 38.7-10). Assim sendo, o Senhor eliminou a ambos, por representarem empecilhos ao cumprimento da promessa de Deus aos patriarcas de lhes dar numerosa descendência (cf. Gn 12.1-3).

Insensibilidade

A segunda das consequências da decisão de Judá de se afastar de seus irmãos foi a insensibilidade para com as outras pessoas, inclusive os de sua casa. Assim como nos filhos, no pai encontramos uma dureza de coração semelhante[5]. Quão diferente é o luto de Judá quando comparado ao luto de Jacó, diante da suposta morte de José? A morte dos filhos parece não lhe trazer dor, a não ser a preocupação de que o mesmo aconteça ao filho mais novo. Quando sua esposa vem a falecer, Judá logo estava “consolado” (cf. Gn 38.12).

É neste momento que os efeitos do afastamento dos seus irmãos, a acomodação às práticas dos cananeus e sua insensibilidade revelam-se de forma mais profunda. Diante de Tamar, primeiro conhecida e depois disfarçada de prostituta cultual, Judá demonstrou ter assimilado por completo os padrões ímpios do povo no meio do qual foi morar.

Judá e Tamar

Seu comportamento reprovável se evidencia em três aspectos:

1. Negou-se ao cuidado devido para com sua nora.

Após a morte de seu segundo filho, Judá tinha duas responsabilidades para com Tamar: 1) garantir que seu filho mais novo, Selá, cumpri-se o levirato; 2) garantir segurança e cuidado para Tamar até o cumprimento do levirato. Em uma única fala, Judá revela perversidade semelhante a de seus filhos: “Permanece viúva na casa de teu pai” (Gn 38.11). De acordo com Waltke, ao mesmo tempo que mantém a autoridade sobre ela, ele transfere sua responsabilidade para outra pessoa e nega o status social devido a Tamar[6].

2. Envolveu-se com uma mulher que considerava ser prostituta.

Sem saber que era Tamar, Judá voluntariamente buscou envolvimento com uma prostitua. Esta é a primeira vez que vemos tal tipo de relação descrita em Gênesis (Gn 38.21). Diante disso, nos perguntamos por que um filho de Jacó procura uma prostitua cultual? Somente uma resposta é possível. Quando se envolveu com as práticas cotidianas dos cananeus, Judá acabou também se envolveu religiosamente com elas. No entanto, isso não quer dizer que ele buscou algo místico ou transcendente. Mas, sim, que já estava adaptado àquela terra não distinguia mais o que era comum das práticas idólatras dos cananeus.

3. Em tudo isso, sua única preocupação era com sua reputação pessoal.

A razão de Hira procurar aquela que achava ser uma prostituta cultual, foi porque Judá deixou com ela seu bordão, cordão e selo como garantia. Assim, para os reaver, Judá enviou por meio de Hira um cabrito como pagamento. Como Hira não encontrou a prostituta, pois ninguém sabia que Tamar havia se disfarçado, Judá declarou a respeito dos seus bens: “Fique ela com o que lhe dei. Não quero que nos tornemos objeto de zombaria” (Gn 38.23).

Conclusão

Desta forma, o afastamento de Judá de sua família o levou a assimilar as práticas e cultura do povo de Canaã. Esta história nos revela um precioso ensinamento sobre os riscos que correm aqueles que também se distanciam dos seus irmãos da fé. Este afastamento, possivelmente, os conduzirá a assimilar os costumes do mundo, até o momento em que a acomodação se transforme em insensibilidade para com os outros e para com Deus. Para ser resgatado de seu estado de cegueira espiritual, Judá precisou primeiro identificar que estava neste estado. Se também o identificarmos, isto nos ajudará a entender porque a história dele está “no meio” da história de José, seu irmão. Mas isso é assunto para outro artigo.

Geimar Lima

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[1] Outras ameaças que a descendência de Abraão passou até aqui foram: fome na terra, ameaça dos cananeus e as próprias decisões precipitadas.

[2] Rubem traiu seu pai (Gn 35:22). Os irmãos venderam José. Pesava ainda ao coração de Jacó, a perda de sua esposa Raquel.

[3] No hebraico, a expressão referente ao casamento é “viu… tomou”, semelhante ao ato de Eva ver e tomar do fruto proibido (Gn 3.6) e a outros relatos que indicam alguma forma de desvio moral (Gn 6.2; 12.15; 24.2).

[4] Esaú teve tal atitude reprovada por Isaque e Rebeca e Abraão proibiu seu servo de tomar uma esposa dentre as canaanitas para Isaque.

[5] Cf. WENHAHM, Gordon. Gênesis 15-50. p. 365.

[6] Cf. WALTKE, Bruce. Gênesis. p. 633.

 

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Como pastor, amo descobrir a beleza do Senhor em sua Palavra e criação. Como pesquisador, empolgo-me por saber que ela é inesgotável.

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