Baseado em 1 Samuel 16
Este post é a sequência do “A alegria de um é o tormento do outro“
O dia chegou. Davi se preparava para comparecer diante do rei, conforme as instruções da convocação que recebera. O que levar? Quanto tempo ficaria lá? Como deveria se vestir para comparecer à presença do rei? Todas essas perguntas passavam por sua mente e mal sabia ele que seus pais já estavam bem adiantados nos preparativos.
– Tudo isto é para eu levar?, perguntou Davi assustado com o tamanho da sua bagagem só com as coisas que seus pais queriam que ele levasse.
– Calma querido, você não vai precisar carregar isto. Seu pai já preparou um jumento para levar estas lembrancinhas com você.
– Mãe, lembrancinha pra quem? Eu não conheço ninguém lá. Pare com isso.
– Confira Jessé, eu vou falando e você me diz se já está ai, prosseguiu sua mãe ignorando completamente o comentário de Davi, e começou a conferir a lista.
– 1 fardo de pães com ervas?
– 1 fardo de pães.
– 1 fardo de bolos?
– 1 fardo de bolos.
– 1 galão de vinho?
– 1 galão de vinho.
– 1 cabrito?
– Cabrito?, perguntou Davi. Para que um cabrito?
– 1 cabrito, Jessé?! repete sua mãe a mesma pergunta aguardando a confirmação.
– Uuum cabrito, confirma Jessé.
– Lembre-se de colocar a harpa, disse Davi.
– Querido, você não vai ter muito tempo para tocar nos próximos meses.
– Mãe, o mensageiro do rei me disse pessoalmente para trazer comigo a harpa.
– 1 harpa?
– 1 harpa”, responde Jessé, colocando-a entre os fardos de pães.
Os preparativos dos pais de Davi revelam que eles também estavam alimentando uma grande expectativa quanto ao futuro de seu filho no palácio. O carregamento listado acima faz parte de uma cultura israelita primitiva de banquetear com alegria e gratidão àqueles que se mostram generosos para com o seu próximo. Jessé sabia que os acontecimentos recentes envolvendo a rejeição de Saul ainda deviam estar na mente dos que viviam ao redor do palácio. Embora Saul tivesse admitido seu erro e tivesse pedido perdão, o Senhor não voltou atrás em sua decisão e o profeta nunca mais se encontrou com o rei daquele dia em diante. O clima era tenso. Assim, a alegria de Davi poderia facilmente ser interpretada pelo rei como uma atitude fingida em relação aos fatos recentes. Por este motivo seus pais preparam este pequeno gesto de gratidão antecipando tudo o que pudesse acontecer na chegada de Davi. Partiu Davi em direção ao palácio sem ter a menor ideia do que o aguardava. Sua expectativa era de se tornar o sucessor de Saul em algum momento após a sua chegada, mas os detalhes desta transição ainda não estavam claros em sua mente. A expectativa de seus pais caminhava na mesma direção, mas eles estavam preparados para possíveis variações no plano original. Nesse caso, as ofertas enviadas seriam providenciais para preparar os ânimos de todos. Davi entra na cidade puxando seu jumentinho carregado de ofertas e presentes, observando que a expectativa da sua chegada não parecia combinar com a chegada daquele que será o sucessor no trono de Israel.
– Seja bem-vindo, Davi ben-Jessé! saudou o chefe da guarda palaciana.
– Servos, acompanhem os moços que vieram com Davi e ajudem a tirar… Isso tudo vai ficar aqui?, perguntou o chefe da guarda tentando entender o motivo de tanta bagagem.
– Então, veja só: meus pais prepararam este carregamento como uma oferta para um banquete na presença do rei. São pães feitos com nossa produção e o cabrito é o melhor do nosso rebanho, explica Davi.
– Certo, certo. Vamos pensar melhor como e quando faremos isso. Por agora, venha comigo; o cabrito fica.
Quando Davi chegou ao palácio ele não era um rapazinho magricelo e imaturo. Ao sugerirem o seu nome, a lembrança que os servos tinham era a de um homem de guerra, fisicamente forte, homem de boa aparência, com menos de trinta anos, que não gaguejava quando lhe era perguntado alguma coisa, mas falava com clareza e com um timbre que demonstrava segurança naquilo que falava.
– Por favor! Parou o chefe da guarda diante de uma grande porta, acenando com a mão para que Davi entrasse na sua frente.
– Senhores, eu vos apresento Davi ben-Jessé! o chefe da guarda anuncia o seu visitante ilustre ao comitê de recepção.
Uma rodada completa com saudações e cumprimentos foram suficientes para inserir Davi no meio deles como um que veio para ficar. Todos se assentaram à mesa, o chefe da guarda e Davi de um lado, os demais no lado oposto. Sorrisos e olhares atentos acenavam ao visitante que após as formalidades viria a tão aguardada “proposta”. Davi achou estranho não encontrar Samuel naquela reunião, já que ele era a pessoa que oficialmente o havia ungido rei sobre Israel, conforme instrução do Senhor. Ninguém naquela mesa estava presente na ocasião quando a unção de Davi ocorreu. E agora? As indagações na mente de Davi foram interrompidas quando o chefe da guarda lhe perguntou:
– Muito bem, vamos ao que interessa. Todos sorriem concordando com a proposta.
– Davi, eu sei que você não deve fazer a menor ideia do motivo porque você está aqui, não é mesmo?
A primeira suspeição de Davi se confirma. “Eles não sabem sobre a minha unção. Se soubessem não teriam me perguntado isso”. A ausência de Samuel nesse encontro está explicada. Se não me chamaram aqui para dar prosseguimento ao que Samuel havia feito, então o que eles querem comigo?
– Nem imagino, respondeu Davi.
– A situação é a seguinte: o rei Saul… o chefe da guarda descreve todo o cenário.
– E onde eu me encaixo nesta história fascinante?
– Então. Este jovem aqui se lembrou de você como um que sabe tocar bem a harpa.
– Certo, certo, a harpa, pontuou Davi.
– E essa é a ideia que tivemos: você tocará a harpa sempre que…, explicaram-lhe detalhadamente todo o plano.
– … e o espírito maligno irá embora, certo? completa Davi a última frase do raciocínio deles por uma dedução lógica.
– Só por curiosidade: alguém de vocês já ouviu falar de algum caso onde isso realmente funcionou?
– Não é assim que os profetas fazem para que o Espírito do Senhor venha sobre eles e profetizem? Eles tocam a harpa e os outros instrumentos, reponderam eles.
Os servos e oficiais de Saul possivelmente se lembravam ainda da ocasião quando ele foi ungido por Samuel e, posteriormente, recebeu o Espírito do Senhor enquanto seguia um grupo de profetas que vinha profetizando e tocando harpa (1Sm 10:5-6). Naquele dia Saul, de fato, fora transformado num novo homem.
– O rei Saul sabe do motivo porque eu estarei diante dele? disse Davi, e a conversa continuou…
– Sim. Foi ele quem autorizou a sua vinda.
– Como vocês sabem que o tal espírito é da parte do Senhor?
– O rei é um ungido do Senhor. Como um espírito que não fosse da parte de Deus poderia atormentá-lo?
– Era ungido! Vocês não se lembram do que disse Samuel? O Senhor rejeitou a Saul.
– Sim, mas ele ainda continua sendo um ungido do Senhor.
– Olhem, a ideia de vocês é tão doida que até me fascina. Porém, o que mais me chama a atenção é o fato do rei ter aceitado isso. Eu aceito o emprego. Tocarei a harpa com muito prazer.
Davi sabia que uma situação como aquela só poderia ter a mão de Deus por detrás dos detalhes. Nem sempre é possível discernir como a vontade de Deus se entrelaça com os planos dos homem, especialmente quando esses planos estão envolvendo a nossa vida. O sentimento de estar apenas servindo interesses alheios, de cooperar efetivamente com projetos que tem tudo para dar errado e de abandonar o seu próprio chamado são extremamente desanimadores. Além disso, por que Davi perderia o seu tempo com pessoas como Saul, o qual não teria mais chance de continuar no cargo? Por que participar de um esforço para remediar a situação de uma pessoa desequilibrada e rejeitada por Deus? Embora Davi tivesse identificado muita imaturidade e compreensões errôneas nos planos dos servos de Saul, a oportunidade de participar e assistir o desfecho dessa “loucura” era muito convidativa. Eu quero fazer parte disso para ver o que Deus está fazendo.
– Então, este é o famoso Davi ben-Jessé. Seja bem-vindo! saudou Saul curioso para conhecer as habilidades do moço.
– Trouxe a guitarra? brincou Saul.
– Por enquanto só um cabrito e alguns pães, meu senhor. Eles representam a gratidão da nossa família pela tua bondade.
– Qual bondade?
– De permitir que o teu servo participe e veja o que Deus tem feito neste lugar.
As próximas cenas desta história jamais passaram pela cabeça de Saul, de Davi ou de qualquer um de seus servos e conselheiros. O relato bíblico nos diz (1Sm 16:21) que em pouco tempo Saul criou tamanho afeto por Davi que mandou pedir a Jessé que o seu filho permanecesse definitivamente no palácio. Quem diria? Algumas lições que podemos aprender com isso:
- Raramente nossos planos se concretizam independentemente dos planos dos outros. Os planos de Davi ao chegar ao palácio eram bem diferentes e distantes daquele que aqueles conselheiros estavam tramando. Quase nada daquilo que eles estavam planejando iria somar ao que Davi buscava, ou seja, eles queriam mesmo era resolver o problema deles. Todavia, Davi acreditava e agia como se os seus planos e os de todos os outros fossem apenas uma pequena parte do grande plano de Deus; se houvesse algum indício de que o Senhor estava agindo, ele queria ver e participar, nem que isso lhe custasse ter que abrir mão dos seus próprios planos. Na verdade, olhe só, o “ministério” de tocar a harpa na presença de Saul resultou em muitos salmos que hoje fazem parte da Bíblia (cf. títulos dos Salmos 18, 52, 54, 57 e 59). Este “ministério” ficou tão famoso que posteriormente, mesmo não sendo para espantar demônios, Davi separou os filhos de Asafe, de Hemã e de Jedutum para a tarefa de “profetizar com a harpa” (cf. 1Cr 21:1). O maior legado que Davi deixou foram os salmos que ele compôs; a maioria deles com o pequeno e importante lembrete “para ser cantado com a harpa”. Deus concretizou os planos de Davi, dos servos de Saul, de Saul e de Jessé enquanto concretizava o seu grande plano.
- Esteja sempre pronto para redefinir o seu conceito de ‘canoa furada’. O conceito de ‘canoa furada’ comunica a ideia de um projeto fadado ao fracasso, algo que não merece o nosso investimento. Assim, mesmo que Saul representasse uma ‘canoa furada’ (o que não era o caso), Davi preferia afundar com Saul e fazer parte do grande plano a manter-se isolado do que Deus estava fazendo. Ah! Ai está. Você já parou para pensar que aquilo que pode ser o maior de todos os seus obstáculos são, na verdade, os seus próprios planos? Geralmente definimos se a canoa está furada com base em nossos planos. Davi pensou rápido e pulou para dentro da canoa. Em pouco tempo ele descobriu que no grande plano de Deus estava o privilégio de desfrutar do amor de Saul (o que deve ter inspirado Jônatas a amar Davi de igual modo) – e pela sua extrema lealdade, Saul o fez seu escudeiro (cf. 1Sm 16:21). O que parecia inicialmente ser uma receita para o fracasso se tornou num grande canteiro de ideias para a composição de muitos salmos. Quem diria?
Daniel Santos