Aprendendo como o oleiro

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Houve um tempo quando os pais costumavam corrigir seus filhos pedindo que pensassem no que tinham feito. Quando criança, eu nunca conseguia fazer bom uso deste “momento de reflexão” porque geralmente eu não me lembrava do que tinha feito, muito menos da relevância daquilo para mim.

Essa prática me faz pensar na maneira como Deus muitas vezes nos coloca em situações para pensarmos mais naquilo que fizemos ou temos feito em nosso cotidiano que podem servir de lição para outras pessoas. Este foi o caso quando Deus mandou que o profeta Jeremias fosse ter com o oleiro (Jeremias 18), pois a mensagem ao povo de Israel naquela ocasião seria passada ao profeta por meio da atividade cotidiana do oleiro. 

Imagine a cena. Alguém batendo na porta, o oleiro interrompe o seu trabalho e vai atender. No caminho passa pela pia com água e tira o excesso de argila dentre os dedos, caminha até a porta enquanto termina de enxugar as mãos. Ele segura na maçaneta e pergunta: 

– Quem é?
– Jeremias, o profeta do Deus altíssimo. 

Do lado de dentro o oleiro emudece atônito, sem saber o que falar, o que pensar e o que fazer diante do inesperado e ilustre visitante. Do lado de fora, o profeta já acostumado com reações como esta, quebra o silêncio e prossegue:

– Estou aqui a pedido do Senhor.
– Sim, claro, por favor, entre! acrescenta o oleiro. 

O pobre homem não teve o tempo para limpar-se completamente, especialmente para uma visita como aquela. Vários pontos em seu rosto e especialmente na testa ainda tinham porções de argila já ressecadas. O profeta entra pelo recinto observando aleatoriamente em diversos pontos, tentando entender o motivo porque o Senhor só lhe entregaria a mensagem naquele local. 

Atrás dele vinha o oleiro ainda mais perplexo tentando entender o que exatamente o profeta procurava em seu modesto ambiente de trabalho, mas não tinha a coragem necessária para perguntar. O profeta prossegue caminhando até a parte mais baixa do recinto onde o oleiro parecia estar trabalhando antes de atender a porta. Nada de extraordinário. Nada que o profeta já não tivesse visto ou conhecido em outras ocasiões. Sem perceber, o profeta se encontrava parado com o olhar fixo na botija de barro inacabada, ainda rodando na plataforma do oleiro. Era a única coisa que se movia naquele lugar. 

Percebendo o olhar fixo e prolongado do profeta na botija inacabada, o oleiro vê-se na obrigação de explicar:

– Ainda não está pronta. Há muita coisa que preciso fazer ainda.
– É isso que você estava fazendo quando eu bati na porta? pergunta o profeta. 

– Sim, sim. Eu estava trabalhando nesta botija, ainda tentando conseguir a curva ideal. 
– Claro, claro. A curva ideal.

Mais alguns minutos em silêncio. Mais alguns olhares vasculhando o recinto. Ainda nenhuma evidência de algo extraordinário que justificasse a ordem do Senhor. 

– Continue o que você estava fazendo, então. Acrescentou o profeta.
– Ah, não, isso pode esperar. Não era nada importante. Este é o tipo de trabalho que eu faço todos os dias para suprir a demanda padrão do meu trabalho. 

Embora o profeta concordasse com cada palavra que acabara de ouvir, pois era pouco provável que a rotina diária do oleiro pudesse de alguma maneira contribuir para a mensagem que Deus tinha para  lhe comunicar, ele precisava ser obediente. Mas estava difícil. Quanto mais ele andava dentro daquela olaria, mais ele  duvidava da necessidade de estar ali. Como disse o próprio oleiro, não havia nada ali que fosse tão importante ou especial. O olhar fixo e silencioso do profeta, às vezes com pausas prolongadas antes de responder ou comentar alguma coisa, estava deixando o oleiro cada vez mais angustiado. Por que ele não fala logo o que quer? Na verdade, nem o profeta sabia direito porque estava ali. O dilema do profeta era maior do que o do oleiro. Mas, já acostumado com o modo variado e criativo de Deus se comunicar, o profeta ousa prosseguir o dialogo com o oleiro:

– Meu querido, deixe-me falar uma verdade: alguma coisa que você fez, está fazendo ou fará tem muita importância para Deus. Ele não iria me obrigar a vir até este local se não houvesse algo ou alguém importante para a mensagem que ele tem a transmitir.
– Ahh… . O oleiro não tinha a menor ideia de como responder aquilo. Na verdade não sabia nem se tinha entendido corretamente o que tinha acabado de ouvir. 

– Você se importa se eu me assentar aqui neste degrau enquanto você continua fazendo o que você sempre faz? perguntou o profeta. 
– Sim, claro! Quer dizer, não! Não me importo de jeito nenhum! Só me permita forrar aqui com este manto. Este não é o melhor lugar para assentar… .  
– Está ótimo assim. Pode deixar. Obrigado. Volte agora para seu trabalho e continue trabalhando como seu eu não estivesse aqui. 
– Você gostaria de beber algo? 
– Não obrigado, estou bem. Preciso apenas que você retorne ao seu trabalho rotineiro. 

O oleiro acena com a cabeça concordando e começa a se afastar sem dar as costas para o profeta. Quanta coisa passava pela mente daquele pobre homem: O que exatamente Deus teria dito ao profeta a respeito daquilo que eu fiz, faço ou farei? Não me lembro de nenhuma reclamação a respeito de qualquer botija que fabriquei em todos estes anos de trabalho. Não me lembro de ter propositalmente reduzido o tamanho do cântaro para favorecer o comércio do que vende o azeite. Não me lembro de ter jamais explorado os servos que me entregam a argila já preparada. Em toda minha vida…

– Meu querido, você precisa começar! Diz o profeta interrompendo a inércia do oleiro.
– Sim, claro.

O oleiro ajeitou as pernas na plataforma giratória e colocou as mãos na argila. A esta altura, ele nem se lembrava mais do que exatamente estava fazendo com aquele vazo. Já tinha se esquecido do modelo e do padrão que aquele modelo especificamente precisava ter. Tentou uma espiada com o canto do olho para ver o que o profeta estava fazendo, mas foi surpreendido com o sinal que ele fez com o dedo, como quem diz “não se preocupe comigo, preste atenção no que você está fazendo”. Acelerou a plataforma giratória e colocou pressão com as mãos sobre a argila retomando assim o processo de dar forma àquela peça. Agora, finalmente ele está de volta ao seu rotineiro trabalho. 

Como parte da rotina, mas especialmente hoje, por causa da visita do profeta, o oleiro parecia não conseguir acertar a mão. O vazo se desmanchava de uma hora para outra. Sem querer dar a impressão de que aquilo foi um vacilo de sua parte, o oleiro já recomeçava outro modelo de vazo sem sair do ritmo. O que parecia estar caminhando para ser um cântaro de repente se tornava numa tigela, e assim por diante. Para tentar disfarçar estes pequenos acidentes, o oleiro acenava com a cabeça como que diz “agora sim!”, mas não ousava olhar mais para o profeta.

Foi neste momento que veio a visão ao profeta dizendo:

– Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel?  —diz o Senhor.
– Eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. E, no momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino, para o edificar e plantar, se ele fizer o que é mau perante mim e não der ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que houvera dito lhe faria. (Jr 18.6-10)

Ao ouvir uns gemidos, o oleiro olha para o profeta e percebe que ele já se encontrava fora de si, tomado pela visão. Ele sorri em seu coração e agradece a Deus por ter usado sua lida diária para trazer inspiração ao profeta.

Duas lições simples que aprendo como este episódio.

A primeira (e a mais importante), tem a ver com a mensagem de Deus ao profeta, destinada ao povo de Israel. A nossa vida, seja como indivíduos, seja como nação, é um projeto inacabado. Deus pode a qualquer momento recomeçar o que ele está fazendo em nós, por nós e através de nós. Ninguém, não importa quanto tempo Deus já tenha gasto modelando aquela vida, tem o direito de pensar que seu pecado e sua maldade não lhe coloca mais na lista dos que podem ser desmanchados e remodelados em modestos utensílios de barro para uso lá no fundo do quintal. Não deve ser por acaso que o primeiro ser humano tenha sido criado a partir da argila modelada pelos dedos de Deus. Um lembrete da mesma mensagem enviada a Jeremias. Semelhantemente, ninguém, não importa quanto tempo tenha permanecido fora da mão modeladora de Deus, tem o direito de pensar que para a sua vida não tem mais jeito. Para estes, a palavra é: arrependei-vos! Abandonar a maldade e a rebeldia contra Deus é a saída certa.

A segunda lição tem a ver com o oleiro. Nunca pense nem diga a respeito de sua lida diária como algo sem valor para Deus. Nós raramente sabemos quem está nos observando e aprendendo com nossa rotina. A mensagem que Deus tinha para o povo de Israel precisava ser comunicada por meio deste detalhe na vida diária do oleiro por razões pedagógicas. A partir daquele dia, todas as vezes que um israelita olhasse para qualquer utensílio de barro eles se lembrariam da mensagem. Isso me desafia a ter uma rotina diária que possa ser usada para inspirar outros a ouvir e conhecer mais da vontade de Deus. Creio que nunca mais aquele oleiro olhou para seu trabalho da mesma forma. Assim também devemos nós fazer. Sempre há alguém nos observando, nem que esse alguém seja Deus.

Daniel Santos

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Professor, pesquisador e pastor. Amo ouvir, refletir e divulgar boas ideias. Creio, sigo e sirvo o Deus que se revelou nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos.

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