Plano ilimitado de bênçãos?

Recebi recentemnete a seguinte pergunta: “Você já ouviu falar no plano ilimitado de bênçãos baseado no Salmo 23?” Não sei se fiquei mais espantado ou curioso. Eis o que responderia a alguém que já adquiriu o tal plano.  Você já parou para ler todas as informações em letras miúdas no seu “plano ilimitado de bênçãos”? Um bom teste para isso seria ver o nosso entendimento do famoso verso do salmo 23 “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”? No meio evangélico em geral, a afirmação inicial desse Salmo parece refletir uma convicção que não se contamina com nenhuma outra discussão teológica. Arminianos e calvinistas travam debates e lutas homéricas no campo doutrinário, mas quando chega o dia do sofrimento e da dor, o Salmo 23 se torna em um tipo de confissão básica no fundo do posso. É aquela primeira reação de esperança que não exige muita reflexão, mas apenas nos situa novamente em relação ao Senhor que temos. Nesse post eu quero fazer duas perguntas sobre essa afirmação inicial do Salmo: 1) Quem está falando no salmo? 2) O que está incluso no pacote “nada me faltará”?

1. Quem está falando no salmo?

Nem sempre fazemos esse tipo de pergunta ao texto bíblico, mas às vezes é necessário. Saber quem está falando é determinante para decidir se o que estamos lendo é verdadeiro ou não. Por exemplo: No salmo 53:1 lemos “Não há Deus!”. Todavia, o próprio verso diz que essas são palavras do insensato. Logo, elas não devem ser lidas como verdadeiras, mas sim como a opinião de um tolo.

Com respeito ao salmo 23, será que a afirmação feita pelo salmista é verdadeira? Quando consideramos a nossa vida particular, especialmente a dificuldade em que muitos vivem, somos tentados a pensar que a lógica do salmista não está funcionando muito bem. Eu confesso e creio que o Senhor é o meu pastor, mas as coisas continuam faltando em minha vida. Não me refiro a itens supérfluos ou extravagantes; muita gente não tem o que comer e nem como bancar uma moradia digna. Em situações assim, como entender o famoso “nada me faltará”? No desespero, muitos acabam chegando a uma destas conclusões: ou o Senhor não é o meu pastor ou, se é, não está cumprindo o papel de provedor. Veja como é fácil tomarmos um rumo errôneo com base na afirmação desse salmo.

O salmo 23 contém o relato do salmista. O Senhor não fala absolutamente nada nesse salmo, como o vemos fazer, por exemplo, no salmo 110:1 “Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita…”. O Salmo 23 descreve a percepção do salmista em relação ao seu Senhor. É uma percepção verdadeira? Sim, é verdadeira. Entretanto, a verdade afirmada na percepção do salmista não pode ser tornar em um remédio para todos os males; há limites.

A pessoa que está falando no Salmo 23 o faz a partir de uma experiência específica em sua vida. Não basta dizer que Davi escreveu o Salmo 23 por causa de sua experiência com o pastoreio de ovelhas, pois essa não era sua única ocupação e nem a principal. Além disso, o salmo 23 não fala só do relacionamento entre o pastor e suas ovelhas. A partir do verso 5, o salmo começa a descrever um cenário no qual há uma mesa, um cálice e um momento de unção; seria uma interpretação muito forçada achar que a ovelha estaria assentada à mesa onde lhe foi servida um cálice. E, como se não bastasse, o verso 6 do salmo descreve um terceiro cenário distinto dos anteriores. O salmista fala da caso do Senhor onde ele espera habitar para sempre. Ora, Davi não viveu para ver o templo construído, logo, ele não pode estar se referindo ao templo de Jerusalém. E, mesmo que estivesse imaginando-se no templo, esse não é um local onde pessoas moram, nem mesmo um rei. O salmista certamente está se referindo à morada celestial.

A pessoa que está falando no Salmo 23 deve ser entendida como alguém cujas experiências foram detalhadas no salmo anterior. O salmo 22 descreve um personagem cheio de perguntas, mas ninguém para responde-las; alguém cheio de perseguidores, mas com ninguém para defende-lo ou julgar a sua causa. Eu defendo que o Salmo 23 deveria ser lido como uma continuação do Salmo 22 e que a ponte que conecta um salmo com o outro deveria ser algo do tipo “entretanto, O Senhor é o meu pastor…”.

Quando entendido dessa maneira, o salmo 23 passa a ser visto como uma confissão não de Davi, mas do Senhor Jesus, já que as palavras iniciais do Salmo anterior foram pronunciadas por ele na cruz.

Para mim, a confissão descrita no Salmo 23 ajuda-nos a entender um pouco daquilo que passava na mente de Cristo quando disse as famosas palavras “Deus meu, por que me desamparastes?” Assim sendo, quando entendemos quem está falando no salmo, fica mais difícil aplicar a confissão do salmo para qualquer pessoa ou para qualquer situação.

2. O que está incluso no pacote?

A expressão “nada me faltará” é muito abrangente, não deixando qualquer brecha para uma eventual situação de dificuldade. Vamos, então, resolver esse primeiro problema. O texto hebraico por trás dessa expressão contém um verbo conjugado na primeira pessoa do singular; isso não aparece na maioria das traduções atuais. Se fôssemos manter a mesma ideia, mas conjugando o verbo na primeira pessoa, a tradução ficaria “o Senhor é o meu pastor e eu não sentirei falta de nada”. Isso significaria usar 13 palavras para traduzir apenas 4 no texto hebraico. Todavia, esse não é o maior dos problemas; o desafio maior é descobrir o quanto estava incluído no pacote “nada me faltará”.

Se adotarmos a tradução “eu não sentirei falta” em lugar de “nada me faltará” (eu recomendo), a lista daquilo que está incluso no pacote vai depender mais do salmista do que do Senhor. O salmo deixa de ser uma promessa do Senhor de prover TUDO o que desejarmos e passa a ser uma confissão de alguém que aprendeu se satisfazer apenas com o fato de ter o Senhor como o seu pastor. “Apenas” é o modo de falar; estar apenas com o Senhor significa TUDO. Entretanto, nem todos estão prontos para se declararem satisfeitos “apenas” com o fato de ter o Senhor como seu pastor; esse é o maior desafio lançado pelo salmo 23. Se as palavras do salmo 23 refletem os momentos finais de Cristo na cruz, então a afirmação “eu não sentirei falta de nada” veio em um momento quando ninguém esteve ao seu lado e nada lhe foi dado como socorro.

Conclusão

Se você estiver pensando que eu estraguei com um salmo tão lindo tornando-o em algo tão triste, considere o seguinte: O que seria mais “lindo”? A confissão de que o Senhor se compromete em dar TUDO o que desejamos ou a confissão de que, se tivermos o Senhor, nos daremos por satisfeitos? Ser “lindo” ou não são coisas que não combinam com a definição daquilo que é verdadeiro. Esse salmo, lido da maneira que interpretei, não diz que o Senhor nos deixará perecer e nos abandonará. Há muitos outros textos na Bíblia que nos asseguram do seu amor e cuidado com cada aspecto de nossa vida. Contudo, se nós não aprendermos a encontrar contentamento com o Senhor (ou, no Senhor), nunca acharemos que temos o suficiente para poder confessar que não sinto falta de mais nada.

 

Daniel Santos

 

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Professor, pesquisador e pastor. Amo ouvir, refletir e divulgar boas ideias. Creio, sigo e sirvo o Deus que se revelou nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos.

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