A Revolta de Joquebede

Joquebede é a mãe do personagem bíblico Moisés, cujo nascimento é relatado no segundo livro da Bíblia, o Livro de Êxodo. Nesse relato, o caráter de Joquebede refletido nos planos de salvar a vida de seu filho salta aos olhos do leitor.

À primeira vista, sua tentativa de resolver o problema do choro do menino causa-nos grande ansiedade por causa da quantidade de situações que podem fugir do seu controle e agravar irremediavelmente o destino do seu filho. Um egípcio poderia achá-lo e arremessá-lo no meio do rio como faraó mandou. Um animal selvagem poderia devorá-lo em poucos minutos enquanto permanecia às margens do rio. O próprio bebê poderia tentar sair do cesto, desequilibrar e cair no rio. A filha de faraó poderia não ter compaixão do menino e fazer o que os egípcios foram instruídos a fazer, ela poderia ainda não aceitar a oferta de Miriã de trazer uma pessoa para amamentar o menino. Moisés poderia ser criado num lar totalmente secular e nunca mais se interessar pela sorte do seu povo.  Por que ela acreditou que seu plano poderia dar certo? O que poderíamos aprender deste plano que ela arquitetou? Observando mais atentamente, há diversas lições importantes que podemos e devemos aprender com sua atitude. Eis algumas que tenho aprendido.

1. Coragem de desobedecer

A primeira grande lição que tiro da atitude de Joquebede tem a ver com a sua coragem de desobedecer as leis de seu país, aquelas que foram decretadas com o propósito de resolver o problema de uma minoria dominante (os egípcios tentando conter o crescimento dos hebreus), mas que custava e confiscava a vida da maioria que trabalhava para construir o país. Desde muito tempo o Egito se mostrou na vanguarda em questões de infraestrutura e planejamento, graças à disposição de alguns faraós em assimilar mão de obra estrangeira qualificada para executar seus projetos. A chegada de José no Egito nos dias que antecederam a grande fome é um bom exemplo de como um faraó poderia solucionar e até prevenir situações graves de abastecimento por meio de uma administração terceirizada. Diferente do que aconteceu nos dias de Joquebede, o faraó que confiou a José a administração do abastecimento do país não o fez às custas da opressão e extermínio de gerações futuras. Pelo contrário, a solução encontrada por José beneficiava a todos indistintamente, exigindo esforços dos servos e seus governantes, ao ponto de alguns egípcios terem que se oferecer como escravos em troca de alimento (Gn 47.18-20). José não estava disposto a manter o pão na mesa do egípcio (apenas porque era egípcio) e deixar padecer de fome o órfão, a viúva e o estrangeiro. Alimento é uma necessidade básica do ser humano, todos precisam e devem se alimentar. Seria desumano e cruel escolher alimentar alguns e deixar padecer outros. A solução de José buscava um bem comum para toda a humanidade naqueles dias. Sua estratégia envolvia “conservar com vida muita gente” (Gn 50.20) e não simplesmente salvar a minoria dominante que lhe havia contratado como administrador naqueles dias. É este o exemplo de leis justas que visam a preservação da vida independente de raça, idade ou status social.

Por que, então, quando a situação é inversa, os egípcios precisam agir com crueldade contra seus escravos para resolver o problema demográfico? Por que o crescimento populacional dos hebreus se constituía numa ameaça para o poder político do faraó? Segundo as palavras do próprio faraó, o temor era de que os hebreus se aliassem com os inimigos dos egípcios no caso de uma guerra (Êx 1.10). Ora, se o temor é com respeito a lealdade do povo hebreu, então os egípcios sabiam que o tratamento que vinham dando aos hebreus não era digno da lealdade que eles precisariam algum dia. Isto com certeza não aconteceria nos dias de José, quando até os egípcios que foram escravizados por José confessavam com alegria: “a vida nos tens dado! Achamos mercê perante meu senhor” (Gn 50.25). Assim, a lealdade do povo hebreu à faraó nos dias de Joquebede tinha sido corroída por décadas de gestão pública desqualificada e cruel; uma gestão que não conheceu e, pelo jeito, não fazia questão de conhecer a respeito do que José foi e fez para o Egito (cf. Êx 1.8). É óbvio que a incompetência administrativa e a crueldade de faraó naqueles dias recebeu a roupagem de um benefício social de controle populacional para o bem de todos. Mas Joquebede conseguia ver por trás daquela roupagem a nudez da tirania e da crueldade daquele decreto.

É bem provável que nem todas as mães hebreias tiveram a mesma chance ou sorte de esconder seus filhos do modo como Joquebede teve. Isso significa que, além dos egípcios que procuravam matar seu filho, ela tinha também que enfrentar o constrangimento de conviver com as mães hebreias cujos filhos foram pegos, as quais poderiam se constituir em obstáculos ao seu plano. Joquebede poderia ter optado por um gesto nobre de solidariedade para com as demais famílias, cujos filhos tinham sido mortos, entregando também Moisés para morrer como mártir.

Além disso, Joquebede poderia ter tirado como lição desta chacina a necessidade de não desobedecer as autoridades. O autor da epístola aos Hebreus acrescenta um aspecto importante de que os pais de Moisés “não ficaram amedrontados com o decreto do rei” (Hb 11.23). É precisamente este princípio que me fascina – a coragem de Joquebede. Ela não se sentiu intimidada. O decreto de faraó, neste sentido, assemelha-se ao decreto das autoridades por Deus instituídas nos dias da igreja primitiva, proibindo a pregação do evangelho. Quando este era o caso, até mesmo o apóstolo Paulo teve a coragem de desobedecer abertamente as autoridades (e pagar o preço de tal desobediência) diante dos tribunais em que compareceu. Para o autor da epístola aos Hebreus, então, a coragem de Joquebede, ainda que não tenha sido o único motivo, foi um motivo determinante em sua atitude. Pela fé, Joquebede poderia ter adotado muitas alternativas. Mas quando o autor aos Hebreus nos diz que pela fé ela não teve medo do decreto do rei, a conclusão a que chego é de que a sua coragem não era o resultado de uma certeza de que seus planos funcionariam, mas sim a causa do seu desejo de agir mesmo não tendo certeza que seus planos funcionariam.

‍A aplicação prática dessa atitude de Joquebede pode ser vista em muitas decisões que os pais de hoje precisam tomar em prol do futuro de seus filhos, decisões estas que lhes custam muita coragem para desobedecer leis injustas do seu país e pagar o preço que os nossos governantes não querem pagar pela sobrevivência das gerações vindouras. Nosso país está construído sobre a estrutura de algumas leis injustas que indiretamente promovem e protegem a perversão, a corrupção e a morte de nossos filhos. Não temos como esconder nossos filhos para sempre, precisamos ter a coragem de desobedecer estas leis injustas e idealizar meios que lhes possibilitem a sobrevivência moral e espiritual. A desobediência de Joquebede não deve ser vista como um ato leviano de sabotagem da liderança por Deus instituída, mas sim como um ato de alguém que não tinha como comparecer diante de faraó e questionar a legitimidade daquela exigência. Seu gesto era um protesto de alguém cujo direito de proteger a vida de sua descendência havia sido roubado. Promover a sobrevivência de Moisés significava promover e participar do cumprimento das promessas feitas a Abraão de multiplicar as sua descendência como as estrelas no céu.

2. Fé nas Escrituras

A coragem de Joquebede estava firmada em sua fé nas promessas feitas a Abraão de que os seus descendentes seriam como o número das estrelas. Quando esta promessa foi feita a Abraão pela segunda vez (Gn 15.12-16), o Senhor deixou bem claro que o seu cumprimento não aconteceria antes da quarta geração dos filhos de Israel no Egito se completasse. Como uma conhecedora das Escrituras até então disponíveis ao povo de Deus, Joquebede percebeu que o momento de ver aquilo acontecer era chegado. Ela poderia não saber exatamente se naquele dia em que ela colocou o cesto no rio seria o dia em que o Senhor libertaria o seu povo, mas ela sabia e cria que Deus podia usar seu gesto de fé para abençoar o seu povo. Nunca em toda a história do povo hebreu a taxa de natalidade foi tão alta – miraculosamente alta! Somado a isso havia a consciência de aquela ser a quarta geração que o Senhor disse a Abraão que libertaria o seu povo do julgo do Egito.

Conforme lemos em At 7.17, alguns dentre os hebreus aguardavam naqueles dias o cumprimento das promessas feitas ao patriarca Abraão. Joquebede era uma destas pessoas cuja fé nas promessas contidas nas Escrituras lhe desafiara neste grande gesto de coragem. O autor de Hebreus enfatiza o elemento da sua convicção quando diz que “pela fé, Moisés, apenas nascido, foi ocultado por seus pais por três meses” (Hb 11.23). Seus planos não eram apenas movidos por um ato de coragem, mas foi a sua fé de que as promessas feitas ao patriarca Abraão valiam para os seus dias. Ao colocar o menino Moisés na face das águas, ela cria na coisa certa, agia no momento certo e contava com a misericórdia da pessoa certa. Estes três elementos constituem o centro do sucesso daquilo que Joquebede planejou.

3. Conhecimento

Sua atitude revela conhecimento do seu mundo, do seu povo e dos seus governantes. Dentre tantas possíveis soluções para livrar a vida de seu filho, por que o cesto? De onde Joquebede tirou esta ideia? Não há como saber ao certo o que passava em sua cabeça, mas é impossível não associar seu plano com a narrativa lendária do nascimento e infância de Sargão, rei de Acade. Ainda assim, mesmo que este seja o caso, Joquebede precisaria ter um conhecimento muito amplo de seu mundo para poder adequar a história de Sargão para a situação de Moisés. Ela precisava saber dos meios alternativos de impermeabilização que valeriam para o contexto do Egito, pois a formula da mãe de Sargão não podia ser aplicada no caso de Moisés. Ela precisava saber detalhes sobre a rotina da filha de faraó, de seus costumes e planos de banhar-se naquela região naquele dia. Ela precisava saber o momento certo de expor seu filho diante dos olhos dos egípcios, contando apenas com um gesto de misericórdia da parte de quem o achasse, ou um milagre da parte de Deus para que o guardasse. É muito pouco provável que o resultado positivo do seu plano tenha sido somente obra do acaso pelo simples fato dela ter deixado a filha mais velha para vigiar o que aconteceria. Os preparativos de Joquebede revelam que ela tinha uma expectativa. Do mesmo modo, a reação imediata de Miriã, sabendo exatamente quem procurar, o que falar e o que oferecer não me parecem obra do acaso; Joquebede planejou isso e planejou muito bem.

4. Abnegação

Finalmente, sua atitude revela abnegação. Ainda que Joquebede tivesse planejado bem aquilo que ela estava fazendo, a proposta da filha de faraó deve ter sido uma grande surpresa: “leve este menino e crie-o para mim”. A ideia não era apenas amamenta-lo, pois o texto nos diz que ela devolveu o menino “quando já era grande”. A abnegação a que me refiro tem a ver com sua visão de criar o menino sabendo que ele retornaria ao palácio para viver ali pelo resto de sua vida adulta. Salvar a vida de Moisés implicaria agora num desafio ainda maior, pois sua primeira estratégia trilhava num caminho sem volta. Ou ela aceitava a proposta da filha de faraó de criar o menino para o Egito ou recusava a proposta e perdia a chance de cria-lo até mesmo para o Senhor. Depois de doze anos, Joquebede teve que aceitar o inevitável momento quando Moisés finalmente foi entregue no palácio e foi feito filho da princesa do Egito.

Acho pertinente pensarmos neste tipo de abnegação demonstrado por Joquebede. Isto nos desafia a pensar “para quem estamos criando nossos filhos?” Não podemos criar nossos filhos para viver somente no contexto do nosso lar, da nossa igreja, da nossa cidade ou pais. Não sabemos o futuro nos reserva. Não sabemos o que o Senhor fará com ou por meio dos nossos filhos. O que sabemos é que a escolha entre criar para o Egito e criar para o Senhor não pode ser vista como excludente. No caso de Joquebede, ela entendia que criar seu filho para ser um egípcio era cria-lo para o Senhor.

É provável que a abnegação de Joquebede tenha envolvido aspectos práticos como não circuncidá-lo, forçá-lo a aprender mais a língua dos egípcios do que a sua língua materna, treiná-lo a amar a sociedade dos egípcios sem se esquecer da sua origem e, acima de tudo, treina-lo numa visão de mundo firmada nas promessas e escritos dos patriarcas (era tudo o que ela tinha naquele momento) que não fosse diluída pela tradição religiosa milenar do Egito. Em outras palavras, ela estava criando um menino para ser um cidadão de um mundo que ainda não existia, a saber, um mundo livre da escravidão no Egito – livre para adorar o Deus da aliança.

Aquilo que Deus fez com Moisés a partir da libertação do Egito ia muito além do que Joquebede poderia sonhar e contribuir. Sua pequena participação, contudo, foi um gesto de coragem, fé, conhecimento e abnegação que garantiu a sobrevivência do seu filho. O que Deus fará com e por meio dos nossos filhos é algo que nunca saberemos completamente, mas preservá-los vivos, fortes, conhecendo a Deus e o mundo no qual vivem é um privilégio que visa a nos preparar para assistir a entrada deles no mundo porvir.

Daniel Santos

 

 

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Professor, pesquisador e pastor. Amo ouvir, refletir e divulgar boas ideias. Creio, sigo e sirvo o Deus que se revelou nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos.

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